Odoyá, Rainha das Águas: festa com mais de 100 anos, 2 de Fevereiro se populariza e mantém tradições

Dia de vestir branco, jogar rosas ao mar e cultuar Iemanjá, o 2 de Fevereiro se populariza cada vez mais entre devotos e admiradores

Foto: Gov/Rafael Martins

Uma certeza soteropolitanos e visitantes podem ter: a próxima sexta-feira em Salvador amanhecerá vestida de branco e o cheiro da água salgada vai se misturar ao de alfazema. É o dia de Iemanjá, Janaína, Mãe d’Água, Dandalunda ou simplesmente a Rainha do Mar. A festa de todos os anos atrai uma multidão no boêmio bairro do Rio Vermelho e tem passado a integrar cada vez mais o calendário de eventos pop’s de Salvador. Mas, à frente de tudo isso, caminham sempre a fé, a ancestralidade, a identidade baiana e uma história de mais de 100 anos.

Se hoje o 2 de Fevereiro é uma festa com 500 mil pessoas, ela tem origem ainda no Brasil colonial, quando o culto à Iemanjá foi trazido pelos africanos. O historiador Carlos da Silva Jr. conta que, na verdade, a orixá era uma divindade da água doce, diferentemente de como a conhecemos hoje. Essa transmutação começou nos navios negreiros que atravessavam o oceano Atlântico. Aqueles que seriam escravizados no Brasil se apegavam à Mãe das Água para sobreviver àquela viagem.

A festa em si, no Rio Vermelho, surgiu há exatos 101 anos, quando o bairro ainda não era tão pulsante e boêmio como hoje. Na verdade, ele era formado por uma colônia de pescadores, que, em um momento de desespero, se uniram para oferecer à Mãe das Águas presentes em troca de um mar tranquilo e fartura nas pescas. Mas o ritual se tornou tão popular que chegou até a ofuscar a festa da padroeira do bairro do Rio Vermelho, Nossa Senhora Sant’Anna, que teve a sua celebração transferida para julho.

Intrinsecamente religiosa, a festa se tornou do povo. O pesquisador Jorge Ramos aponta que ela começou a ser incorporada por outras camadas sociais, da classe média a alta da cidade, e por conta disso ganhou outros contornos. “A elite branca passou a ir ao Rio Vermelho e levar uma flor para Iemanjá, mesmo aquelas que não processavam cultos afro-brasileiros”, afirma ele, pontuando que anteriormente a festividade era vista com maus olhos por essa mesma elite.

Iemanjá virou pop?

“E assim, nos últimos anos, Iemanjá ficou pop”, complementa o pesquisador. Hotéis, restaurantes e casas de show aproveitam o apelo do 2 de Fevereiro com festas privadas. Como o dia acaba ganhando toda essa gama de novos contornos e públicos, há aqueles que vão pela devoção e os que têm pouca ligação religiosa. Em 2024, a festa acontece em uma sexta-feira e já emenda com o calendário de Carnaval, o que faz com que a parte profana seja ainda mais latente. Há quem não veja problema neste misto, afinal a Bahia é a terra do sagrado e do profano. Mas tem também aqueles que concordam com Carlos e defendem que a parte religiosa não deve ser perdida de vista. “É religiosa do Candomblé, com a presença de membros de religiões de matriz africana e de pescadores. É importante que não se perca essa dimensão dos participantes que tradicionalmente conduziram essa data e a dimensão religiosa”, diz o historiador.

Dos navios negreiros à rosa jogada ao mar

No ano passado, a festa no Rio Vermelho completou seu centenário. Desta vez, são 101 anos, mas o número quebrado não desanima devotos e animadores. Quem passar pelo bairro na noite desta quinta- -feira vai perceber. Testemunhará cânticos ao som de tambores, manifestações culturais como dança e capoeira, enquanto filas de uma população ansiosa se formam para levar oferendas escolhidas com muito cuidado para Iemanjá.

A certeza dessas cenas já é carregada com antecedência e motivada pela devoção de um povo. Às cinco horas da manhã, na tradicional alvorada, a Colônia Z-01 de pescadores revela, na Casa de Iemanjá, o presente principal dos festejos da Rainha do Mar. Ali, ele ficará até o ápice do festejo, na tarde do dia 2, quando pescadores irão embarcar em uma jornada marítima de fé e devoção até o “Buraco de Iaiá”. Em meio à água morna e salgada da costa baiana, os pescadores depositam as oferendas à orixá em um ritual em que o popular e o religioso navegam lado a lado.

Getúlio Santana trabalha há 30 anos na comissão de organização da festa. Para ele, o 2 de Fevereiro não é qualquer data: é uma das únicas celebrações no Brasil com um grande apelo popular e ligação diretas às religiões de matriz africana. Getúlio lembra que a celebração mobiliza toda uma comunidade desde os dias antecedentes. Neste ano, por exemplo, ao lado de órgão municipais, a colônia de pescadores vai realizar um mergulho coletivo para limpar a água e permitir que as oferendas sejam entregues em um mar limpo. De acordo com ele, estima-se que ao menos 500 mil pessoas passem por ali.

Foto: metropress/Clarissa Pacheco

Filhos de uma rainha

Para Thamires de Almeida, yawo de Yemanjá do Ilê asè Kale Bokun, é um privilégio ter sido escolhida e ser filha da orixá. Presença fiel nos festejos de 2 de Fevereiro, ela começa seu ritual já no dia 1º pela noite. “É uma grande celebração de fé e amor, pessoas reunidas ali com um único propósito: louvar essa grande mãe”, comenta. Para Thamires, o lado profano faz parte, já que Salvador é uma cidade festeira em sua essência.

Entre aqueles que vão pela admiração, está Franciele Luz. Ela conta que frequenta a celebração desde 2017, mesmo não se considerando pertencente a alguma religião. Assim como Thamires, ela começa a organizar sua ida já na noite de 1º de fevereiro, quando deixa suas oferendas. Depois, retorna no dia 2 para a celebração. “A festa, para mim, é um combo dos dois, mas principalmente do sagrado. Tenho uma sensação de pertencimento muito forte e não imagino um ano sem fazer toda esse ritual”, conta Franciele, defendendo que a parte da diversão ajuda a levar um olhar mais atento e respeitoso sobre as religiões de matriz africana.

Ao contrário de Thamires e Franciele, Luma Oliveira gosta mesmo é da agonia na orla e dos encontros com os amigos. “Gosto muito da energia da festa, sempre que vou é bem divertido, sempre marco com meus amigos de encontrar lá, normalmente vou um pouquinho antes do horário marcado pra jogar minhas rosas no mar, e depois encontro com eles. A festa tem crescido a cada ano, então cada vez mais vejo grades de shows em vários locais”, descreve. A verdade é que a festa é da Rainha, mas também é do povo, seja ele devoto ou admirador.

Protagonismo no povo

Diferente, por exemplo, da Lavagem do Bonfim, o 2 de Fevereiro não funciona como um palanque político. Claro que gestores e candidatos estão ali, circulando entre a população. Mas o protagonismo não está neles. O historiador Carlos concorda com essa avaliação e traz um questionamento: “Porque a Lavagem do Bonfim tem essa presença mais ativa de políticos do que a de Iemanjá? Será que é porque leva o nome de um orixá?”

Por: Laisa Gama – Metro1

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