Colunista Joice Vancoppenolle: “Vinho laranja, que novidade é essa?”

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Isto é especialmente verdade em bares, caves e restaurantes onde se pode ver orgulhosamente “vinhos naturais” escritos na entrada. Uma cor e um sabor que podem surpreender os neófitos, intrigar os mais curiosos, ou perturbar os mais conservadores ligados às denominações. Há alguns anos, o vinho laranja tem monopolizado grande parte do debate entre os amantes dos vinhos naturais e os consumidores mais tradicionais. No entanto, o vinho branco de maceração é sobretudo uma tradição cultural de milhares de anos atrás, ligada à história da humanidade e às suas primeiras embriaguezes.

Apesar de ainda aparentar ser uma novidade, o vinho laranja é tão velho quanto a própria produção de vinhos.

Atentos para não se desviarem das exigências legais que fazem com que uma bebida possa ser rotulada e vendida como vinho, enólogos e produtores do mundo inteiro ousam e criam, incessantemente, novos métodos, tecnologias e até mesmo novos produtos no mercado da vinicultura. Não dá para dizer que o vinho laranja em si seja uma dessas recentes inovações enológicas, mas, ao mesmo tempo, o que é bem novo é o ressurgimento do vinho laranja como um produto de consumo e a presença de vários artigos, palestras e reportagens falando sobre ele.

Na realidade, o vinho laranja é quase tão antigo quanto a história do próprio vinho. E se formos procurar a melhor acepção do termo “inovação”, ele seria talvez o mais “atrasado”, ou, para não ser tão cruel, o vinho mais conservador e natural em sua forma de produção. Em contrapartida, se mencionarmos o vinho laranja em uma roda de amigos, é possível que a reação de alguns seja de surpresa, estranheza ou ceticismo, fazendo com que ele ainda possa ser considerado uma novidade. O vinho laranja ainda é muito pouco difundido no mercado, sua produção é bem discreta e, no Brasil, os preços dos importados -e mesmo dos nacionais – da espécie, são elevados, se comparados com alguns de seus “rivais” brancos, rosés e tintos.

A técnica de produção desse vinho é milenar, mas a retomada mais intensa de produção ocorreu nos anos 90, quando dois vinicultores de Friuli, na Itália, passaram a aproveitar a casca de uma uva branca regional, mantendo-a junto com o mosto,

após a prensagem, sem simplesmente descartá-la, que é o que normalmente se faz na produção de um vinho branco tradicional. No vinho laranja, a casca da uva passa a ser a protagonista de seu processo de vinificação.

A diferença entre os vinhos laranjas e os vinhos brancos, portanto, é o processo de deixar o sumo das uvas prensado junto com as suas cascas durante a maceração, como acontece na fabricação dos vinhos tintos. Ou seja, os sucos das uvas são mantidos por um longo período em contato com as cascas, dando ao vinho final cor, polifenóis e textura que não seriam extraídos das cascas no caso de um vinho branco “normal”.

Muitos produtores de vinho laranja utilizam técnicas naturais e orgânicas, evitando o uso excessivo de produtos químicos, tanto no vinhedo como no processo de fermentação. Em alguns casos, o S02 (dióxido de enxofre) é utilizado para impedir a ação das leveduras selvagens, presentes nas cascas das uvas, quando não se deseja que isso aconteça.

Além dos métodos naturais e orgânicos, ainda há produtores que usam técnicas biodinâmicas, outros aplicam manejos totalmente naturais (nada de enxofre, por exemplo) e, finalmente, há outros que produzem o vinho laranja de maneira ancestral, em ânforas de barro enterradas no solo, como já se fazia há milhares de anos.

Agora vou explicar o que anunciei no início do texto: por que o vinho laranja é novo e velho ao mesmo tempo? Eu diria que os vinhos laranjas são os ancestrais dos vinhos brancos atuais. Mas estou falando, claro, de duas épocas bem diferentes: uma realmente remota, há milhares de anos, quando o vinho surgiu e a uva branca era sempre fermentada em ânforas de barro, enterradas por semanas no solo, com casca e tudo: isso mesmo, até os galhinhos dos cachos de uva ficavam junto. E a outra época, é uma releitura, já com uso de técnicas e cuidados mais modernos – mas ainda preservando as cascas em contato com o mosto durante a fermentação – deixando o vinho final bem menos rústico, mais palatável e comercialmente viável.

A cor desses vinhos abrange uma imensa paleta em torno do tom alaranjado. Vão desde um dourado intenso, um laranja pálido, passando pelos tons salmon e pêssego, até uma cor âmbar ou acobreada. Conforme a variedade de uva e quanto maior o

tempo de contato das cascas com o mosto, mais intensas serão as cores finais do vinho laranja.

Os vinhos laranjas em geral têm perfil aromático intenso, mas isso pode variar muito, em virtude do maior contato das cascas com o mosto. Eles podem se apresentar ricos em notas florais, cítricas (pêssegos, nectarinas, tangerinas, maracujá…), de ervas, amêndoas, e até mesmo de aromas minerais ou terrosos.

Outra diferença marcante entre os vinhos laranjas e os vinhos brancos está na presença de tanino. Como o tanino se encontra na casca da uva, em geral costumamos raciocinar que apenas vinhos tintos teriam tanino, por serem macerados com as cascas, ao contrário dos brancos. Mas agora, como vimos que os laranjas são verdadeiros “brancos feitos como tintos”, é fácil entender que os vinhos laranjas, sim, têm taninos! Claro, são taninos mais suaves – como os de um rosé por exemplo – ao ponto de alguns deles lembrarem no sabor os vinhos tintos mais leves, jovens, delicados.

Um bom vinho laranja é “redondo” no paladar, apresenta uma textura pronunciada, que alguns chamam até de rugosa, ou viscosa. Ao mesmo tempo, deve ser suave e refrescante, sem que a presença tânica o deixe excessivamente adstringente. Outra coisa que pode aparecer no paladar é um leve amargor de final de boca, que não é defeito, mas antes de tudo o resultado do método de vinificação.

O vinho laranja pode não ser muito indicado para iniciantes, devido a sua complexidade. Por outro lado, exatamente por ser tão intrigante e diferente, também não pode ficar de fora da experiência de um bom enófilo novato.

Algumas vinícolas preferem colocar no rótulo a expressão VINHO LARANJA, ORANGE WINE, VIN ORANGE… enquanto outras omitem totalmente qualquer menção a se tratar de um vinho laranja, embora seja o caso. Os italianos preferem a expressão VINO AMBRO (âmbar, em italiano). O certo é que quase todas colocam um rótulo na cor laranja, ou com detalhes em laranja. Em inglês, também há os termos “skin fermentend”, ou seja, “fermentado com as cascas”, “skin macerated” (macerado

com as cascas), e há ainda a expressão “amber wine” (na Geórgia). Produtores de língua inglesa, na verdade, podem preferir não rotulá-lo como ORANGE WINE, a fim de evitar que o consumidor leigo pense que se trata de um vinho produzido a partir da laranja (a fruta), o que, obviamente seria descabido, mas, por via das dúvidas… afinal, o consumidor tem o direito de interpretar das duas formas, já que o idioma, nesse caso, permite a confusão.

O vinho laranja torna-se, por sua diversidade de características possíveis (aromas complexos, notas gustativas diversas, níveis de taninos variáveis, nem tão leve, nem tão pesado, sendo uma bebida versátil para harmonização com diversos alimentos. Eu diria que ele está entre um branco encorpado – como alguns grandes brancos que amadurecem em barricas de carvalho – e um tinto de corpo mais leve e delicado.

Dessa maneira, ele harmoniza bem tanto um prato de frutos do mar, sejam peixes e crustáceos, dos mais leves aos mais intensos e gordurosos, até carnes magras, brancas, e algumas massas com molho de ervas aromáticas. Tudo depende, naturalmente, da intensidade da comida e do vinho laranja que se tem à mesa, como de resto é assim com a harmonização em geral: comida e vinho têm que ter “pesos” semelhantes. Sem falar que, com sua carga aromática, o vinho laranja também harmonizará bem com temperos fortes e perfumados e especiarias exóticas, como as dos pratos asiáticos.

Joice Vancoppenolle

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