Reinfecção por covid-19: doença leve pode dar ‘falsa segurança’ sem garantir imunidade, alerta cientista da Fiocruz

O alerta vem do virologista Thiago Moreno, pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), principal autor de um estudo que confirmou casos desse tipo em pacientes brasileiros.

Moreno e seus colegas investigaram uma família do Rio de Janeiro: um casal na faixa dos 50 anos e sua filha e genro, que estavam na faixa dos 30 anos.

Todos moravam na mesma casa, tiveram covid-19 pela primeira vez em março e voltaram a ficar doentes em maio. Os quatro apresentaram poucos ou nenhum sintoma da primeira vez e tiveram uma doença mais grave na segunda.

Em dois destes casos, os pesquisadores confirmaram por meio de exames genéticos de amostras do vírus coletadas nas duas ocasiões que se tratavam de duas variantes diferentes do Sars-CoV-2.

Nos outros dois, não havia restado amostras da primeira infecção, mas os cientistas dizem ser difícil não se tratar de casos de reinfecção com base em critérios clínicos e epidemiológicos.

Os cientistas investigaram, então, por que os quatro pacientes voltaram a se infectar pelo coronavírus e concluíram a partir de uma análise de anticorpos que seus organismos não criaram uma memória imunológica após a primeira infecção.

Por isso, eles continuaram vulneráveis ao coronavírus e acabaram se contaminando de novo.

“Isso é um sinal de alerta para as pessoas que podem ter uma falsa percepção de segurança após ter uma covid-19 branda na primeira onda ou no começo desta segunda onda que estamos vendo no Brasil e no mundo”, diz Moreno à BBC News Brasil.

A pesquisa foi publicada no periódico Social Science Research Network e ainda não foi revisada por outros cientistas.

Ainda não existem dados suficientes em nível global para entender o quão frequente é a reinfecção.

A agência de notícias holandesa BNO News está monitorando o assunto e apontava em 24 de dezembro que havia 30 casos confirmados no mundo, dois deles no Brasil, e 2.290 sob suspeita.

De acordo com o Ministério da Saúde, até a última segunda-feira (21/12), havia no Brasil 58 casos suspeitos em análise.

Uma dificuldade para confirmar estes casos é ter amostras de um mesmo paciente em ambas as infecções para poder fazer o sequenciamento genético dos vírus de cada ocasião para atestar que são cepas diferentes.

Isso prova que não se trata de uma infecção persistente, em que um mesmo vírus voltou a se multiplicar depois de um tempo. Mas sem isso é mais difícil comprovar a reinfecção, e esse foi um problema enfrentado por Moreno em sua pesquisa.

Foi possível comprovar a reinfecção em dois dos casos, a mulher de meia idade e seu genro, porque exames genéticos mostraram que se tratavam de cepas diferentes.

Mas não havia amostras da primeira infecção para dois dos pacientes: o homem de meia idade e a filha do casal. Mesmo assim, eles foram considerados casos de reinfecção por alguns motivos.

No primeiro caso, a mulher de meia idade estava isolada em sua casa e pegou na primeira vez uma variante do coronavirus que chegou ao Brasil por meio de viajantes.

Seu marido havia entrado em contato com os pesquisadores para ser testado porque achava que tinha sido infectado por um colega de trabalho que havia viajado ao exterior.

Os cientistas concluíram então que só o homem de meia idade poderia ter passado o coronavírus para sua parceira.

E, na segunda infecção, os dois pacientes pegaram uma cepa diferente da que foi identificada pelo exame genético do vírus que infectou a mulher da primeira vez.

O segundo caso foi considerado uma reinfecção por sua ligação com os outros, explica Moreno.

“É difícil olhar para casos de contatos domésticos em que dois se reinfectaram de maneira totalmente documentada e olhar para os outros dois e desconsiderar porque não tinha amostra da primeira infecção.”

A partir desta constatação, os cientistas partiram para investigar por que estes pacientes ficaram doentes de novo. Eles encontraram uma resposta em uma análise dos anticorpos que existiam no organismo dos quatro.

“O que nos surpreendeu foi perceber que, depois da primeira infecção, eles não tinham um nível suficiente de anticorpos do tipo neutralizante”, diz Moreno.

Esse tipo de anticorpo impede que nossas células sejam infectadas pelo coronavírus e é produzido por um dos dois tipos de resposta imunológica.

A primeira é a chamada resposta imune inata, uma primeira linha de defesa que envolve células genéricas que entram em ação ao detectar um invasor. Às vezes, isso basta para acabar com a ameaça.

Por sua vez, a resposta imune adaptativa é aquela que o organismo desenvolve especificamente contra um vírus ou bactéria.

Ela envolve a produção de anticorpos e, em algum momento, uma memória imunológica que vai permitir que o nosso organismo nos proteja de um mesmo patógeno quando formos infectados novamente.

Mas ela leva alguns dias para ser desenvolvida e é produzida quando a doença é mais grave e duradoura.

Os cientistas acreditam que uma covid-19 leve, em que a pessoa fica menos tempo doente, não dá tempo de gerar uma resposta imune adaptativa, que gera os anticorpos neutralizantes.

Os quatro pacientes do estudo terem poucos anticorpos neutralizantes é uma “prova inequívoca”, diz Moreno, de que eles não desenvolveram uma memória imunológica depois da primeira infecção.

“Eles tiveram uma resposta imune inata muito forte no primeiro episódio e controlaram a infecção. Isso não foi suficiente para desencadear os mecanismos da memória imune gerada pela resposta adaptativa. Isso só foi alcançado depois da segunda infecção, quando detectamos um aumento dos anticorpos neutralizantes”, explica o cientista.

‘Exame sorológico positivo não é passaporte de imunidade’

Isso mostra que muitos podem estar equivocados ao pensar que está tudo bem se já tiveram covid-19. “Não está tudo bem, especialmente se foi um caso brando ou muito leve, quase assintomático ou assintomático”, diz Moreno.

O cientista alerta que mesmo quem fez um exame sorológico que apontou a presença de anticorpos contra a covid-19 em seu sangue não pode se descuidar.

Ele diz que a qualidade destes exames é baixa por enquanto. Os testes sorológicos para o novo coronavírus são recentes e ainda não têm uma precisão ideal.

Por isso, podem falhar ao, por exemplo, identificar erroneamente os anticorpos para outras doenças como se fossem os anticorpos contra o Sars-CoV-2.

Ou podem ainda apontar corretamente a presença de anticorpos contra o novo coronavírus, mas estes anticorpos podem não ser neutralizantes. Para descobrir isso, é preciso uma análise mais complexa que não é feita pelos laboratórios comerciais.

“Um exame sorológico positivo não é um passaporte de imunidade”, adverte Moreno.

Como essa descoberta influencia a vacina?

Mulher sendo vacinada
Legenda da foto,Pesquisa aponta que uso de duas doses em vacina é a melhor estratégia

A boa notícia é que essa pesquisa também indica que uma vacina para covid-19 deve ser baseada em duas doses, e já é assim com muitos dos imunizantes que estão sendo pesquisados (e com todos que já tiveram sua eficácia atestada até agora).

Mas o pesquisador da Fiocruz diz que ainda precisa ser melhor investigado o intervalo ideal entre a primeira e a segunda dose.

Além disso, ele defende que os esforços científicos a partir de agora devem se concentrar em entender o quão comum é a reinfecção de covid-19.

“Não temos mais que provar se a reinfecção existe ou não, porque já temos um número razoável de casos documentados com todo o rigor científico. Temos que saber qual é a frequência na população em geral porque isso é importante para fazer a gestão das políticas de saúde pública.” (BBC)

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