Colunista Moacir Saraiva: “Amigo, nada é perfeito”

 

A pandemia suscitou várias situações inusitadas no cotidiano do ser humano. Não vou me ater a pior delas que é a partida de muitos irmãos para o outro lado da vida, essa situação é inusitada, em virtude de ela ter levado muitos e de uma só vez, e continua levando, infelizmente.

Os olhos dos que estão sobrevivendo veem fatos que, em nenhum outro momento da história, tenham dado as caras. Algo como jornalistas e políticos fazendo as vezes de médicos, ou seja, receitando ou desreceitando medicamentos para pacientes acometidos de Covid, uma peste que nem os cientistas a desvendaram e não sabem, ao certo, como combatê-la com eficácia. Não me lembro de ter visto isso ao longo dos meus 60 anos. Outra questão também estapafúrdia é que, ao invés de se buscar amenizar o sofrimento dos sobreviventes e evitar mais mortes, boa parte da sociedade brasileira está buscando culpados. A peste do século tomou proporções jamais imaginadas no nosso país, aqui encontrou um ambiente propício para seu habitat, uma vez que o sistema de saúde é precário e muitos e muitos políticos e agentes públicos infectados fortemente com o vírus da corrupção, outros possuídos pelo vírus da ignorância, assim, o vírus da Covid está deitando, rolando, se esparramando e infectando muitos e muitos brasileiros, lamentavelmente.

Um dos estranhamentos foi ficar quase um ano ou mais sem visitar pessoas queridas, isso trouxe muito desconforto para todos, sobretudo, psicológico, com relação aos parentes ainda se forçava uma barra e se buscava uma forma de manter encontros. Muitos adultos e idosos ficaram sem entender esse fenômeno, alguns forçavam a situação, esperneavam, gritavam, franziam a testa e iam à casa de entes queridos, a despeito de uma fartura de argumentos contrários e contundentes, se isso afetou os de mais idade, os pequenos, então, muitos choravam horrores no desejo de ir comer as guloseimas da casa dos avós ou simplesmente saborear um colo.

Decorrido mais de um ano do início da pandemia, e após receber as duas doses da vacina, o sujeito ligou para um amigo querido, também imunizado, e marcaram uma visita. Nesse contato telefônico, além de agendarem a data e horário, estabeleceram uma carta magna contendo prescrições comportamentais e de logística a fim de os protocolos para a proteção contra a covid serem respeitados.

No dia marcado, todos os cuidados foram adotados pelos dois amigos. O visitante ao se postar na porta da casa do amigo, deu um banho de álcool em gel nas mãos e apertou a campainha. O portão foi aberto, à distância, e ao ultrapassá-lo, havia um tapete especial a fim de limpar os pés, ele cumpriu o ritual e viu o seguinte aviso: para prosseguir, deixe os sapatos aqui. Ao andar um pouco, estava esperando-o uma vasilha para ele imunizar as mãos com o álcool em gel. Ele obedeceu aos protocolos da casa e seguiu, de longe avistou o local do encontro, pois lá já estava o amigo, bem instalado em uma cadeira. Havia também uma mesa ao centro e ao redor dela, duas cadeiras vazias, uma com uma placa contendo o nome do visitante e a outra com o nome da esposa do dono da casa.

A efusão bastante forte se manifestou apenas através dos olhares e demais expressões faciais, pois nenhum abraço e nem contato físico, sequer o “murrinho” tradicional, frequente nos tempos de pandemia, foi usado, isso constava na carta magna feita para esse encontro. Os amigos começaram a jogar conversa fora, fato que ocorria com frequência antes dessa peste se espalhar pelo mundo, uma boa conversa não tem início, meio e fim, ela simplesmente acontece. Algumas risadas, enfim, um bom papo. Após essa explosão de alegria inicial, a esposa chegou trazendo um suco para o esposo e petiscos, após os cumprimentos próprios nessa pandemia, ela voltou e foi pegar uma cerveja para o convidado. Os donos da casa sabiam qual a marca que aprazia ao amigo e esta foi posta sobre a mesa. O sujeito bebeu um gole, a bicha tava estranha, e a conversa continuou, agora, além dos dois amigos, a dona da casa também participava do bate-papo. O segundo gole foi bebido e mais estranha ainda desceu a cerveja.

Apesar da estranheza da bebida, o sujeito não disse nada, pegou a lata e foi ler a data da validade, já estava com seis meses vencida. Aí, se dirigiu ao dono da casa e disse:

– Meu amigo, nós fizemos uma carta magna para o nosso encontro e você se esqueceu de um detalhe importantíssimo, pois, para mim, esse pormenor não seria necessário constar no nosso pacto.

O casal anfitrião arregalou os olhos e, imediatamente, os três começaram a sorrir. O marido falou:

– Desembucha.

– Amigo, você me serviu uma cerveja vencida há seis meses e está choca.

– Amigo, nada é perfeito.

Respondeu o anfitrião.

 

 

MOACIR SARAIVA – 14.06.2021

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